A LIÇÃO DOS INVISÍVEIS - Correio da Lavoura

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15 de mar. de 2022

A LIÇÃO DOS INVISÍVEIS

Vicente Loureiro

Quando deixa de existir a esperança de que Deus escreve certo por linhas tortas, o jeito é fazer torto sob ou ao lado de linhas certas. Assim, surgem as moradias plantadas nos desvãos de viadutos do metrô e às margens de segurança das vias férreas. Juntando sob o mesmo teto precariedade, insalubridade, desconforto e muito risco, denunciando o descaso do antes com o do depois.

Explico: o descaso do antes é o que faz subir as construções sob ou ao lado das linhas metro-ferroviárias, provocadas pela produção permanente dos sem-tetos da nossa economia, escancarando o déficit habitacional e visibilizando assim a exclusão. O outro, o do depois, é o que deixa claro que existem territórios de ninguém. Onde ninguém sabe, ninguém viu e, pior, ninguém toma providências. Sua excelência o fato parece gritar:  daqui não saio, daqui ninguém me tira.

A vida segue até que um incêndio ou outro acidente qualquer solape vidas, pertences e esperanças e, claro, provoque indignação e caça às bruxas num exercício de denuncismo para purgar culpas e responsabilidades. Diante da resiliência dos fatos, não muda nada. Não raro, as mesmas vítimas voltam a ocupar esses mesmos locais, o que os mantêm inalcançáveis diante das frustradas tentativas governamentais de remissão dos pecados da política habitacional.


Não precisava ser assim. O exemplo é a de gestão de faixas de terra usadas para passar linhas de transmissão de energia que, comparadas as destinadas aos transportes metro-ferroviários, tem sido muito mais eficientes e seguras. Há registros de tentativas de ocupações sempre frustradas, sem deixar de ser encarada como ativo de servidão pública sob o regime de concessão, mas que, na prática, parecem ter o olho do dono a cuidar do pedaço. Onde não se pode construir e pronto. Assim funciona desde sempre.


Os casos das linhas de metrô e trens são um pouco mais complicados. A experiência internacional nos mostra que não só é possível, como em alguns casos recomendável, construir sob, sobre e até ao lado dessas linhas. A arquitetura e a engenharia juntas têm, há pelo menos 80 anos, dado exemplos viáveis e vistosos do quanto é possível aproveitar espaços e oportunidades geradas por tais áreas nas grandes metrópoles. Exemplos não faltam. Desde os pioneiros e carrancudos edifícios que engolem as estações do metrô de Moscou, até aquelas mimetizadas na cena urbana de Tóquio. Quase não são vistas, mas todo mundo usa.


Tecnologias aplicadas ao conforto e principalmente à segurança estão disponíveis. Soluções criativas de usar o leito metro-ferroviário, sobretudo junto as estações, para plantar edifícios de uso misto e variados não faltam. Até mesmo as propostas de ocupação dos vãos dos viadutos existentes nas charmosas Genebra, na Suíça, e Nice, na Riviera francesa. Nos falta ainda compreender que projetar e gerir servidões públicos exigem, em alguns casos, superar o foco monotemático que costuma orientá-los, mas que, paradoxalmente, também os transformam, às vezes, em terra de ninguém. Debaixo de alguns viadutos, os sem-tetos topicalizaram, a seu modo, as lições do mundo desenvolvido. Passou da hora de mudar o jeito de olhar essas oportunidades urbanísticas e demandas sociais. Lições não faltam, incluindo a dos invisíveis.

*Vicente Loureiro é arquiteto e urbanista.