*Vicente Loureiro
Quem matou e mandou matar parece já estar esclarecido, segundo relatório da Polícia Federal posto às claras no último domingo. Cabe agora à justiça condenar ou não os suspeitos, averiguando as provas e evidências juntadas e perdidas em 6 anos de procrastinação “bem conduzida” das investigações. É muito importante que esse crime bárbaro e de motivação torpe traga a seus mandantes e autores a punição merecida, ainda que tardia.
São tão acachapantes as ligações reveladas no tal relatório entre a polícia, políticos, milicianos e assassinos de aluguel que se torna difícil focarmos nas causas de se chegar ao absurdo de, em pleno século 21, na cidade do Rio de Janeiro, considerada a capital cultural do país, assassinar uma vereadora no exercício de um mandato popular, legitimamente conquistado graças a uma plataforma política previamente anunciada.
É fundamental que toda essa luz jogada sobre o “modus operandi”, assustadoramente promíscuo, do assassinato de Marielle ilumine também a razão principal de seu homicídio: a luta travada nas periferias das grandes cidades brasileiras por acesso a terra. Bem de raiz essencial para nele se plantar o abrigo. Necessidade atávica do ser humano, capaz de, além de emprestar segurança no morar, outorga dignidade no viver urbano.
Essa espécie de passaporte para o usufruto da cidade, negado ainda a milhões de brasileiros transforma-se muitas vezes em conflito de interesses, principalmente em áreas com acentuada valorização imobiliária. É onde, a permanência dos mais pobres além de indesejada passa a ser reprimida através de ações de intimidação, incêndios provocados e, quando “necessário”, eliminação do opositor. A certeza de impunidade, a ganância e crueldade dos promotores desse urbanismo miliciano faz correr sangue onde deveria brotar esperança.
Além de custar caro e ser obtido na maioria das vezes na informalidade, essas frações de terra urbana vêm sendo cada vez mais produzidas e ofertadas pelas milícias ou por “empreendedores” por eles protegidos. Aquilo que há algumas décadas era resultado de ocupações de terras públicas ou privadas sem uso, promovidas por movimentos sociais, virou um negócio extremamente lucrativo por não considerar os limites das leis que regulam e orientam o fazer e o refazer da cidade e contar com a omissão no controle do uso do solo por parte do poder público.
Segundo estimativas, mais de 50% do que se produz nas cidades brasileiras é via informalidade. Não fica difícil calcular a dimensão que o “negócio” de loteamentos e condomínios irregulares tomou. Incompreensível é constatar que setores da sociedade não tenham ainda se dado conta de que vive nele o ovo da serpente da chamada violência urbana, que a todos assombra e subjuga. Eles cooptam lideranças, na base da força desalojam moradores inadimplentes ou indesejados e eliminam opositores. Creem ser donatários de parte do território da cidade. Resta-nos, com indignação e repúdio, mostrar-lhes que não.
*Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa, é autor dos livros “Prosa Urbana” e “Tempo de Cidade”.