*Vicente Loureiro
Numa dessas manhãs de primavera chuvosa e friorenta, voltei ao hábito de caminhar pelas ruas próximas de minha casa em busca de saúde e bem-estar. Em pouco mais de duas horas, deparei-me com cenas do cotidiano carregadas de imagens fortes, não só por seus significados, mas sobretudo pela quantidade de pessoas envolvidas. Nenhuma dessas cenas inéditas em cidades brasileiras. Todas, sem exceção, incômodas.
A primeira delas, composta pelos moradores em situação de rua dormindo embaixo de marquises e tendo folhas de papelão ou tranqueiras como paredes provisórias. São vários, não cheguei a contá-los. Cena bastante diferente da que se via por aqui há três ou quatro décadas, quando o relento abrigava apenas um casal, então chamados de mendigos, conhecidos por seus nomes próprios: a Jurema e o Zé. Havia com eles mais proximidade e alguma acolhida. A cidade não lhes era tão indiferente como a que hoje se comporta diante de habitantes completamente invisibilizados.
Sigo em frente, com olhos nostálgicos à procura do Zé e da Jurema. Chego a me surpreender com saudade da tolerância sumida das ruas que percorro. Paro então no sinal de um cruzamento movimentado. Uma garota de 10 ou 12 anos com um rosto de belos traços aproxima-se de um carro e com fala mansa e educada consegue vender um pacote de guloseimas ao motorista constrangido. Impressiona-me seu olhar de ilusões perdidas. Parecia mirar o vago horizonte. Impossível esquecer o que ela dizia sem falar.
Não será ela uma estatística a mais dos jovens “nem-nem”, pois trabalhar para comer seguirá sendo sua sina. Dificilmente estudará. Pior, não terá tempo para sonhar. Seu modo de vida lhe sequestrou esse direito fundamental. Infeliz das cidades onde existem crianças cujo futuro é tão incerto quanto não sabido. Não precisava ser assim, concluo. Quando o sinal fica verde deixo a cena, mas ela insiste em me acompanhar.
Já voltando para casa, o relógio sequer chegou às 9 horas, passo ao lado de um Centro Pop (Centro de Referência Especializado em População de Rua) e me deparo com a terceira cena. Ali, todos os dias, são distribuídas quentinhas para quem tem fome. Um número expressivo de pessoas aglomera-se no entorno de domingo a domingo, debaixo de sol ou de chuva. A maioria são idosos, mas não só, mães com crianças pequenas também engordam a fila onde não há lugar para esperança.
A cara da fome assusta. É preciso resistência para não desviar o olhar. Há desconforto no ar nessa cena. Não há espaço para nostalgia nem desilusão, o sentimento dominante é de indignação. Um país que se gaba por ser um dos maiores celeiros do mundo não deveria deixar brotar em suas cidades tanta gente sem ter o que comer. Acolher os desvalidos, devolver futuro aos esquecidos e matar a fome de quem ficou para trás deveriam ser as principais prioridades das cidades brasileiras. Sem inclusão social não haverá futuro urbano civilizado, seguro e sustentável.
*Vicente Loureiro é arquiteto, urbanista e escritor.