UTOPIAS REVISITADAS - Correio da Lavoura

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24 de ago. de 2022

UTOPIAS REVISITADAS

*Vicente Loureiro


Segundo noticiário especializado, umas 10 cidades futuristas estão sendo planejadas para serem construídas em várias partes do mundo. Crise de habitação, questões climáticas, novas tecnologias disponíveis, entre outras motivações, estão por trás dessa recorrente ambição de se reinventar as cidades. Ainda que para tanto, em alguns casos, se lance mão de utopias urbanísticas forjadas no decorrer dos séculos XVIII e XIX.

A novidade, se é que podemos chamar assim, são aquelas com pegada de cidades inteligentes. Todas com pretensão de promover um choque nos modelos de desenvolvimento urbano praticados mundo afora e, quem sabe, transformarem-se em referências para uma nova geração de cidades, produto da revolução tecnológica em curso. Dentre dessas propostas, cabem um novo layout urbano em oposição aos atuais de forma circular e rádioconcêntrica ou, até mesmo, a construção delas em sítios inóspitos como desertos ou florestas, e, em certos casos, até mesmo flutuantes, verdadeiras ilhas artificiais.


Todas, porém, com fortes apelos de sustentabilidade, confundido por vezes com conceitos de mera subsistência. E, claro, com uma larga e quase sem limite crença no poder milagroso das novas tecnologias. Uma espécie de versão high tech das antigas utopias tipo Cidade Linear, Cidade Jardim, etc. Em resumo, uma prima mais nova e pretenciosa: a Cidade Inteligente. Solução para os males urbanos incluindo os complexos como os da exclusão socioterritorial. Tudo parece ser possível nas chamadas Smart Cities. Será?

Talvez a mais reluzente dessas utopias urbanísticas revisitadas seja “A Linha”: uma megacidade, na verdade um extenso edifício todo espelhado, destinada a abrigar 9 milhões de habitantes, com 170 km de extensão, 200 m de largura por 500 m de altura, atravessando o deserto e montanhas da Arábia Saudita. Um projeto tocado pessoalmente pelo príncipe herdeiro Mohamed Bin Saloman, habituado a conduzir com mãos de ferro as missões de governo espinhosas daquele país, incluindo as de eliminar opositores. Disposição e dinheiro parecem não faltar para tirar do papel esse projeto tão utópico quanto inusitado.


Nas palavras de seus defensores, “A Linha” será sinônimo de mudança, uma oportunidade única para se estabelecer um novo parâmetro de referências para a combinação de prosperidade, qualidade de vida e preservação ambiental no mundo urbano. E mais ainda, será capaz de demonstrar que o mundo tem capacidade humana, tecnológica e compromisso para revolucionar nosso modo de viver em cidade. E por aí seguem os propósitos desse edifício cidade, ou será a cidade edifício, cujos estudos de viabilidade financeira já estão prontos e as obras de infraestrutura anunciam já ter começado.

Críticas e questionamentos de toda ordem também já circulam nos meios acadêmicos e técnicos. Vão desde duvidar da exequibilidade do projeto até as possibilidades de prosperar convívio urbano pleno dentro de uma estrutura hiperdensa, com fisionomia de um desfiladeiro infinito e com sustentabilidade para lá de questionável. Mas há também entre os críticos a expectativas de que não só “A Linha”, como as outras iniciativas semelhantes e em gestação, possam trazer inovações importantes para o aprimoramento do modo de fazer e manter as cidades existentes. Pelo visto, não faltarão polêmicas, provocadas por essas utopias tentando virar realidades. De todo modo, vale conferir, as cidades reais não vivem sem elas.

*Vicente Loureiro é arquiteto, urbanista e escritor.