FRONTEIRAS DO URBANISMO - Correio da Lavoura

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9 de ago. de 2022

FRONTEIRAS DO URBANISMO

*Vicente Loureiro


O eixo da rua é divisa político-administrativa entre dois municípios da região metropolitana do Rio. De um lado, um jeito de tratar o espaço público e, do outro, o oposto. Por não poderem ser vistos separadamente, provocam a estranha sensação de que, observados de um mesmo ponto de vista, a realidade pode ser completamente distinta. Ou pior, de onde quer que se olhe, as duas, digamos, versões da realidade, estarão presentes. Dialeticamente digladiando-se entre si.

Pensei: será que inventaram o metaverso concreto? Ou então, segundo a Teoria da Conspiração, será que é uma ação deliberada das autoridades dos dois municípios naquele pedaço de fronteira deixando tangíveis cenários em flagrante oposição de significados? Compondo uma mesma narrativa, numa bem urdida ação política para provar que opostos se atraem e de certa forma jogam juntos a embaralhar os olhos e os sonhos. Será?


Deixando de lado as digressões metafísicas ou políticas, vamos aos fatos. Esses sim concretos e frutos de decisões ou da falta delas no modo de tratar o bem de uso comum do povo: o espaço público. De um lado, a atitude de deixá-lo livre e desimpedido para o usufruto de sua missão principal e quase única no caso: deixar fluir para lá e para cá os transeuntes, ofertando-lhes em complemento, se possível, alguns mimos físicos de conforto ao corpo e por que não também para alma.

Do outro, o oposto, uma sobreposição de usos absolutamente dispensáveis a entulhar o ambiente com quiosques, barraquinhas, outdoors, entre outras traquitanas, tornando o ir e vir das pessoas uma caminhada de obstáculos e desvios absolutamente desnecessários. Para completar, envolvidos por elementos de comunicação visuais tão ilegíveis quanto agressivos.


O primeiro, um jeito de fazer cidade representando uma ordem com certo cuidado estético e respeito ao interesse público. O outro, deixando uma desordem arranjada dar primazia a interesses pessoais, espremendo e tencionando a necessidade de por ali se passar em paz.

As cidades, naquilo que elas têm de mais relevante que são seus espaços de uso comum e as paisagens que lhes constituem, podem ser de um jeito ou de outro. Escolhas fazem toda a diferença. Mesmo quando elas pareçam fazer parte do mesmo cenário, como no exemplo escolhido para o artigo. As diferenças vão deixando claro, com o passar dos olhos, o lado onde a cidadania pode atravessar com mais tranquilidade e algum encanto, pensando, inclusive que todo o entorno pode melhorar. Do outro, o direito de quem grita mais alto subjugando o andar do presente e tolhindo o olhar para o futuro. Assim como na política, o urbanismo tem lado.

*Vicente Loureiro é arquiteto, urbanista e escritor.