"O RIO DA MINHA ALDEIA" - Correio da Lavoura

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1 de set. de 2021

"O RIO DA MINHA ALDEIA"

Vicente Loureiro


Se Fernando Pessoa, ou melhor, Alberto Caeiro, de quem tomo emprestado o título para este artigo, conhecesse antes o rio da minha aldeia, provavelmente não produziria versos guardando certa dicotomia, como os do célebre poema:

...o Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia...

Pois teria a certeza de não ser possível existir rio qualquer mais bonito do que aquele que corre pela minha e não pela aldeia dele. Falo isso pois era um rio policromático. Tinha uma cor a cada dia, às vezes mais de uma.


Tal fenômeno hídrico visual transcorreu por muitos anos no curso do Rio dos Macacos, um pequeno afluente de 83 km de extensão do Ribeirão das Lajes, o principal tributário do Rio Guandu. Onde está plantada a estação de tratamento de água responsável pelo abastecimento de quase toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Pequeno, porém, mais do que notável rio. Principalmente no trecho em que atravessa, quase na diagonal, o perímetro urbano de Paracambi. Onde recebia a descarga das águas servidas do tingimento de tecidos provenientes de duas fábricas têxteis localizadas na cidade.

Além de riscos à saúde, provocados pelos despejos de resíduos com elementos químicos nocivos e perigosos, o Rio dos Macacos ganhava também, por conta deles, cores variadas. De certo modo, não deixava de ser um rio multicolor. Isso o tornava distinto e curioso. Era comum entre moradores ouvir expressões do tipo: ”Hoje o rio está violeta, é quando fica mais bonito”; “Hoje o sol está fazendo brilhar o amarelo ouro das águas do rio”; “Gosto quando o rio está todo verde, combinando com a vegetação das margens, fica lindo”. Havia, já naquela época, meio século atrás, quem se assustasse com aquela agressão ambiental, a maioria, entretanto resignada, entendia ser necessário, quase inevitável, pintarem o rio daquele modo.


Já para o olhar das crianças, aquilo parecia obra de magia. O rio mudava de cor sempre e, a cada cor, trazia consigo, ao mesmo tempo, algo de encanto e espanto. Pouco importava se os peixes já não vivessem mais nas suas águas. Aguçava a imaginação delas o fato de tudo poder ser colorido, até a água. Assim, como nos contos de fadas, tudo mudava num piscar de olhos ou, no máximo, de um dia para o outro. Havia inclusive aquelas a acreditar na lenda do leito colorido do Rio dos Macacos ser a fonte a alimentar o arco-íris. Não se deve duvidar nunca do poder extraordinário das cores.

Passado tanto tempo, recebo agora uma boa notícia transmitida por um amigo de lá: “O Rio dos Macacos ressuscitou, os peixes voltaram, pelo menos os acarás, bagres e tilápias já são vistos em seu leito ainda turvo de esgotos domésticos”. As tintas das fábricas deixaram de ser despejadas faz muito tempo. Razão mais que provável do retorno da vida animal ao rio. Com a realização de obras de saneamento e de coleta e tratamento de esgotos recém anunciadas, é de se imaginar que, em breve, o rio resgate a sua cor original. Espero viver para conhecê-lo de fato. Nesse dia, não terei dúvidas em afirmar: esse é o mais belo entre todos os rios, com a devida permissão do poeta.

*Vicente Loureiro é arquiteto e urbanista.