URBANIDADE VIRTUAL - Correio da Lavoura

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14 de dez. de 2021

URBANIDADE VIRTUAL

Vicente Loureiro

Faz alguns anos, o tempo também era marcado pelas brincadeiras de rua. Voltadas quase sempre mais para meninos do que para meninas, mas obediente a um calendário não muito preciso, porém infalível. Assim, havia o tempo das pipas, das bolas de gude, dos piões, entre outras. Não tinham data certa para começar nem acabar. Aconteciam em determinadas épocas do ano. Iam chegando, viravam a coqueluche do momento e, sem mais nem menos, sumiam, dando lugar a outra já de outro tempo.

Engraçado é que dispensavam campanhas publicitárias, atos oficiais ou distribuição gratuita de artefatos indispensáveis a realização das brincadeiras. Aconteciam e ponto. E, mais importante, eram esperadas com certa ansiedade todos os anos. Não existiam redes sociais a impulsionar vontades ou desejos da garotada. Rolava mesmo era no boca a boca espontâneo e de inegável eficiência. Deveria haver alguma razão naquela lógica em dividir os tempos das brincadeiras e conseguir atrair tantas crianças e adolescentes a delas participar. Além de muitos marmanjos que não tinham ainda tido tempo de ver o tempo passar.


Foi-se o tempo dos bambolês, dos bilboquês, amarelinhas e ioiôs, já aí incluindo mais as meninas. O mundo mudou. Nas cidades, já não se brinca mais tanto nas ruas e nos espaços públicos. Os automóveis, cada vez mais apressados, e a violência urbana fizeram deles quase que só lugares de passagem. Às vezes, parece até que a prática das improvisadas, mas deliciosas, peladas de ruas foram proibidas. De tão raro de se ver, elas já chegam a ser tratadas com um estorvo.

Fico a pensar que urbanidade é essa? A que está sendo gestada no mundo dos games e no uso abusivo das redes sociais pela molecada atualmente. Além de promover certa obsolescência dos playgrounds e dos pátios escolares, ela produz novos códigos de relacionamento e civilidade. E, certamente, outros modismos ou novos tempos para as brincadeiras contemporâneas. Porém tudo muito virtual, espaços públicos mesmo só no tal do metaverso. Curioso saber como se pode pular carniça nele.

A prática dos esportes talvez possa substituir o papel das brincadeiras de rua no aprendizado do exercício da urbanidade. Mas ela está cada vez mais “profissionalizada” nas escolinhas, onde o tempo de brincar tem virado tempo de aprender, com rigores e regras demais e brincadeiras de menos. Mesmo na esperança que os games e os esportes consigam, com o passar do tempo, elevar o grau de urbanidade das novas gerações, não se deve dispensar a necessidade de humanizar o uso das ruas, trazendo de volta o convívio animado e alegre das crianças e dos jovens. Reduzindo o protagonismo dado nelas aos automóveis e permitindo que a paz volte a ser a garantia de uma convivência urbana plena, saudável e usufruída preferencialmente nos espaços públicos.

*Vicente Loureiro é arquiteto e urbanista.